Revista Capital
Aberto
Danilo Gregório
O livro O Futuro do Direito Comercial seria apenas mais uma entre tantos outros de autoria de Fábio Ulhoa Coelho, advogado e professor titular da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC–SP), não fosse o prolífico autor ter usado a obra para apresentar sua mais ousada invenção: a minuta de um novo Código Comercial. Publicado no segundo semestre de 2010, com 1.076 artigos, o texto virou projeto de lei em menos de um ano. E o que poderá ser a glória de Coelho — cravar seu nome como pai de uma legislação importante — também tem lhe rendido um bombardeio de críticas de colegas nos últimos meses.
Coelho se dispôs a
essa tarefa ao se dar conta da "urgente necessidade de recoser os valores
prestigiados pelos princípios do direito comercial brasileiro". Apesar de
bem–intencionada, a iniciativa é vítima de uma saraivada de ataques que aumenta
desde dezembro do ano passado, quando o Ministério da Justiça colocou na
internet uma consulta pública sobre a medida, com encerramento previsto para
abril. Alguns dos petardos são disparados por profissionais notáveis no mundo do
direito societário, como Erasmo Valladão França, professor da Universidade de
São Paulo (USP), que travou no início deste ano um acalorado duelo de palavras
com Coelho no site jurídico Migalhas. "Esse projeto foi feito às carreiras, sem
preocupação sistemática, precisão de linguagem nem de conceitos. É totalmente
prolixo", esbraveja França. As críticas recorrentes passam pela conveniência
desse código, por sua redação e por eventuais implicações às companhias e ao
mercado de capitais.
DECIFRA–ME
OU TE DEVORO — Um dos trechos mais inusitados do projeto de lei é o que se
refere às sociedades anônimas, que vai do artigo 144 ao 169. Ele copia alguns
fragmentos da Lei 6.404, de 1976, sem mudar nada. O problema é quando se atreve
a inovar, por exemplo, definindo o poder de controle em quatro categorias:
totalitário; majoritário; minoritário ou difuso; e gerencial ou pulverizado. A
iniciativa seria válida, visto que o conceito de poder de controle, ausente na
lei, é um dos mais debatidos e estudados nos últimos tempos. No entanto, o
projeto impressiona pela falta de rigor com os termos usados. O controle
totalitário é descrito como a titularidade da "totalidade ou quase a totalidade
das ações com direito a voto"; o gerencial exigiria "percentual reduzido do
capital votante". Não se sabem, porém, os significados práticos de "quase" e
"reduzido".
Outro ponto
controverso colocaria em xeque um instrumento tradicional de participação de
acionistas minoritários no processo de seleção dos administradores das empresas.
O voto múltiplo — faculdade atribuída pela Lei das S.As. a detentores de 10% das
ações ordinárias que lhes permite, na eleição de conselheiros de administração,
multiplicar seus votos pelo número de vagas no conselho — ganha uma nova leitura
no projeto. O texto faz com que o acesso ao "voto proporcional", definido com as
mesmas características do voto múltiplo, seja decido pela assembleia ou
determinado pelo estatuto, e não mais uma garantia legal. "Isso seria uma
agressão aos minoritários", avalia Nelson Eizirik, sócio do escritório
Carvalhosa e Eizirik Advogados. Em vez de revirar pontos bem resolvidos na Lei
das S.As., na opinião do jurista, o projeto poderia ter se dedicado a avançar em
questões mais preocupantes hoje — como reorganizações societárias envolvendo
empresas de um mesmo grupo controlador, uma constante fonte de conflitos de
interesses e de embates entre acionistas controladores e minoritários. O texto
se omite nesse campo.
Após conversar com
colegas e se conscientizar dos riscos de tocar na Lei das S.As. provocando
mudanças ainda mais daninhas, Coelho se convenceu de que seria melhor limar
esses artigos do projeto. No atual estágio de tramitação, contudo, qualquer
alteração no texto só poderá ser feita pela Câmara. Coelho assegura que já
existe um consenso entre os deputados sobre a necessidade de retirar esses
itens. Conte–se, então, com o bom–senso dos parlamentares. "Embora muita gente
sinta o contrário, tenho total confiança nos deputados e senadores", tranquiliza
o advogado.
Mesmo que a parte
relativa às sociedades anônimas desaparecesse, restariam normas gerais do código
potencialmente danosas às sociedades anônimas. Diz o artigo 116 do projeto: "A
responsabilidade dos sócios pelas obrigações sociais é sempre subsidiária. Os
bens dos sócios não podem ser executados por dívidas da sociedade senão depois
de executados todos os bens do patrimônio social". Para Ligia Pinto Sica,
professora da Direito GV, esse tipo de regra poderia atingir os acionistas de
companhias abertas. Da forma como está, diz ela, a redação dá a entender que os
bens dos sócios de uma sociedade anônima podem chegar a ser
executados.
JUSTIFICATIVA — O
deputado Vicente Cândido (PT–SP) foi quem transformou o código vislumbrado por
Coelho no Projeto de Lei 1.572, de 2011. Pós–graduado em direito empresarial
pela PUC–SP no ano passado, ele acatou a tese de Coelho em defesa de um melhor
tratamento do direito comercial. No texto da justificação que acompanha a
consulta pública, o parlamentar diz que o "Código Comercial atualmente em vigor
é do tempo do Império (1850) e, evidentemente, tornou–se, pelo decurso do tempo,
incompatível com a realidade dos negócios." Cabe aqui uma ressalva: boa parte
dessa carta do século 19 foi revogada por leis posteriores. "O que sobrou do
código antigo é o trecho que fala do direito marítimo", explica Angela Donaggio,
pesquisadora da Direito GV. Curiosamente, bem o direito marítimo ficou fora do
projeto.
A função básica de
um código é organizar dentro de um único sistema todas as leis que se referem a
um mesmo tema. Entretanto, na visão de alguns, essa utilidade teria caducado nos
dias de hoje. Isso porque, com a internet, ficou fácil listar rapidamente as
leis que se referem a determinado assunto, assim como a jurisprudência de suas
aplicações e alterações sofridas. O último código aprovado pelo Congresso
Nacional foi o Código Civil, em 2002."Não há sentido em falar de um novo código
na era do Google", alfineta França. Mas, como em toda boa briga de advogados,
valem argumentos em todas as direções.
Há quem ainda
lamente o fato de o Código Civil, de 2002, ter se embrenhado na área comercial,
tratando de relações entre empresas, notadamente, as limitadas. Para esse grupo,
a ideia de um documento que aprimore eventuais inconsistências na parte
empresarial do Código Civil é louvável. Foi justamente com esse objetivo que
Coelho concebeu seu projeto. Ele busca diminuir custos e incertezas que o
diploma de 2002 trouxe às sociedades limitadas, iniciativa elogiada até mesmo
por seus detratores.
Entre as propostas
que são bem–vindas, está o maior detalhamento da apuração de haveres, processo
pelo qual se determina o montante devido a um sócio que se retira de uma
sociedade limitada. "Isso corresponde, sem dúvida, à questão mais debatida em
juízo sobre a sociedade limitada, representando mais de 90% das ações em curso
relativas a esse tipo societário. O Código Civil reservou a esse tema apenas um
único dispositivo, o artigo 1.031, enquanto o projeto dedica–lhe os artigos
210 a
225", reforça o autor. Microrreformas na legislação atual, segundo o advogado,
não seriam suficientes para amenizar a insegurança jurídica de alguns temas. "O
juiz não é estimulado a estudar as relações entre as empresas na forma como são
tratadas pelo Código Civil", salienta Coelho. "A maioria dos países
desenvolvidos tem um Código Comercial", acrescenta.
RELAÇÕES COM
BRASÍLIA — Toda a polêmica em torno da utilidade e da qualidade técnica da
proposta de Coelho suscita algumas reflexões. Uma pergunta chega a parecer
pueril, de tão primordial: por que alguém resolveu elaborar sozinho uma proposta
audaciosa, que busca transformar as relações empresariais no Brasil, com
impactos tanto para as companhias fechadas quanto para as abertas? Dessa
indagação deriva outra: se os críticos consideram tal medida "descabida", ou, na
definição ardilosa do jurista Modesto Carvalhosa, "surreal", por que se ocupam
com ela, em vez de simplesmente renegá–la ao desprezo
total?
A primeira questão,
que não deixa de ser uma crítica, Coelho tenta rebater com veemência. "Não
existe código escrito por uma pessoa só", ressalta. O advogado tem razão. Além
do período de consulta pública, da qual todos podem participar, especialistas
têm a chance de escarafunchar o projeto de lei e propor mudanças superficiais ou
radicais durante sua tramitação no Congresso. Normalmente, leis especiais e
códigos são alvos de debates públicos quando ainda são meros anteprojetos, antes
de ingressarem no Congresso. Um projeto bem acabado e amplamente discutido tende
a evitar que parlamentares mexam demais na parte técnica e se intrometam em
assuntos que não sua especialidade. Coelho admite que, contrariando essa lógica,
a minuta ora em discussão foi escrita só por ele, sim. Ele explica que não
pensou em convidar nenhum conhecedor do tema para analisar a proposta em
conjunto porque o texto é fruto de seu livro, que escreveu sozinho. Foi reduzido
do tamanho original (num total de 406 artigos decepados) e revisado a pedido de
Vicente Cândido, que, aparentemente, tinha pressa em levar o plano
adiante.
Coelho rejeita as
acusações de "vaidoso" e "antidemocrático" que tem sofrido. Afirma que só
aceitou fornecer o texto para o projeto de lei porque sabia que haveria uma
comissão de juristas para estudar a proposta. Para o professor, só estranha
essas circunstâncias quem não sabe que o projeto está disponível para avaliação
em um site público, com as ferramentas de interação oferecidas pela
internet.
O Ministro da
Justiça, José Eduardo Cardozo, demonstrou simpatia ao projeto, durante o 1º
Congresso Brasileiro de Direito Comercial, organizado por Coelho no ano passado.
Isso ajuda a entender a segunda questão, sobre a comoção causada em pares de
Coelho que discordam da proposta. Há quem veja grandes chances de o projeto
seguir adiante, tanto pela rapidez com que a minuta de Coelho ingressou na pauta
da Câmara quanto pelo relacionamento pessoal do professor com o ministro.
Cardozo e Coelho são compadres. Foram colegas de faculdade, e o ministro,
padrinho de casamento do professor. A velocidade com que o projeto segue adiante
pode ser explicada, talvez, por uma crença genuína na relevância da iniciativa.
Mas haveria favorecimento político? "Não existe, em uma democracia, essa
possibilidade. Um ministro não pode impor à sociedade um Código Comercial",
enfatiza o autor.
A indignação dos
advogados também decorre do fato de um instrumento legislativo de tamanha
dimensão gerar, ao contrário do pretendido, ainda mais insegurança. Isso porque
nem o Código Civil, que entrou em vigor em 2003, teve tempo para ser digerido. E
o novo Código Comercial, se aprovado da maneira como está, replicará temas
presentes na legislação sobre falências, reformulada em 2005, e na Lei das S.As.
Mesmo que não faça grandes alterações nessas searas, o fato de incluí–las pode
exigir uma nova interpretação das normas, acredita França. "É disso que
precisamos neste momento para destravar o processo econômico no Brasil, um novo
código com novas regras?", questiona Otavio Yazbek, diretor da Comissão de
Valores Mobiliários (CVM), que também tem observado o andamento do projeto.
Segundo Coelho, a tramitação do projeto no Congresso não deve ser concluída em
menos de três anos. De qualquer maneira, se aprovado, vale a torcida para que,
até lá, suas imperfeições tenham sido percebidas e
corrigidas.