Contra o abuso ou
abuso contra?
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Jornal Valor Econômico – Legislação & Tributos – E2
Por Gianpaolo Smanio
26/04/2017 - 05:00
Muito se tem falado nos efeitos deletérios que o assim denominado
projeto de lei contra o abuso de autoridade pode ter em relação à Operação
Lava-Jato, inibindo a atuação de integrantes da Polícia Federal, do Ministério
Público e da magistratura no combate a um gigantesco esquema de corrupção que
levou às cordas a Petrobrás. Pelo porte e pela relevância da empresa, a maior
do país, toda a economia brasileira sofre os reflexos da crise que afeta a
estatal, atualmente a petroleira mais endividada do mundo.
Mas as consequências do relatório que o senador Roberto Requião pretende
ver aprovado na Comissão de Constituição e Justiça não se esgotam aí. Caso seja
convertido em lei, o texto criará obstáculos praticamente intransponíveis para
todos aqueles que têm o dever funcional de investigar, denunciar e condenar os
autores de milhares de delitos que, somados, prejudicam enormemente a atividade
econômica no Brasil.
Um exemplo? O transporte de cargas, cujo custo é pressionado em virtude
dos investimentos que as empresas precisam fazer a fim de mitigar o risco de
roubos. Compete ao Estado, por intermédio de seus agentes, reprimir a prática
desse e de outros crimes. Isso exige preparo técnico e muita dedicação por
parte daqueles que atuam no sistema de Justiça.
E é exatamente neste ponto que entra o projeto de lei contra o abuso de
autoridade. Se for mantido nos termos do relatório do senador paranaense, o
texto prestará um grande desserviço à sociedade, em nome de quem o Ministério
Público exerce as suas prerrogativas.
O primeiro ponto que merece reparo é o parágrafo segundo do artigo 1º da
proposta de Requião, que estabelece que a divergência de interpretação de lei
ou na avaliação de fatos e provas, necessariamente razoável e fundamentada, não
configura, por si só, abuso de autoridade.
Ora, o conceito do que venha a ser razoável na interpretação da lei ou
na avaliação de provas é algo fluido o suficiente para fragilizar a posição de
quem tem a responsabilidade de fazê-lo. A hermenêutica, ou seja, a
interpretação da lei não deve de modo algum representar risco para os
integrantes do sistema de Justiça, uma vez que isso pode resultar na inibição
de sua atuação.
No limite, a defesa do investigado, denunciado ou sentenciado entenderá,
sempre, que a interpretação do aparato legal e a avaliação das provas
disponíveis utilizadas na persecução penal contra seu cliente não estão no
âmbito do razoável. Em uma situação extrema, um caso que chegue ao Supremo
Tribunal Federal (STF), a mais alta Corte do país, poderá ensejar a
possibilidade de se alegar abuso de autoridade por parte daqueles que atuaram
no exercício de suas funções contra a posição adotada no julgamento.
Investigar, denunciar e julgar pressupõe independência. O policial, o
promotor e o juiz devem formar suas convicções livremente, sem que divergências
na hermenêutica constituam uma verdadeira espada de Dâmocles sobre as suas
cabeças.
Mas isso não é tudo. O projeto de lei contra abuso de autoridade, de
maneira absolutamente despropositada, permite que as divergências de
hermenêutica e todos os outros delitos descritos na proposta sejam objeto de
ação penal privada por parte de quem se considerar ofendido.
É o que está escrito, com todas as letras, no artigo 3º do texto
apresentado à Comissão de Constituição e Justiça do Senado.
Se prevalecer esse mecanismo, as organizações criminosas terão à sua
disposição uma arma poderosa contra os agentes públicos. Toda e qualquer
iniciativa de quem, em nome da sociedade, ousar tentar reprimir a prática de
delitos poderá ser seguida de uma ação penal privada por abuso de autoridade. O
agente público ficará com o ônus, ao cumprir sua tarefa, de providenciar a sua
defesa nos tribunais.
Nem é preciso que seja condenado. A simples disputa judicial consumirá
tempo e dinheiro de policiais, promotores e juízes, transformando quem tem a
missão de evitar o descumprimento da lei em presa fácil de quem faz do
desrespeito à norma legal o seu meio de vida.
Qualquer boletim de ocorrência será um risco para o policial, que poderá
ter de constituir advogado a fim de se defender na Justiça contra a acusação de
abuso de autoridade. Qualquer prisão em flagrante, mesmo que realizada com a
observância de todos os preceitos legais, como deve ser, permitirá aos
integrantes das organizações criminosas a proposição de uma ação penal privada
a fim de desestabilizar o agente público, minando-o psicológica e
financeiramente.
O aperfeiçoamento das instituições é sempre bem-vindo. No entanto, isso
deve ocorrer de forma serena, sem atropelos, colocando-se o interesse nacional
acima de quaisquer outros.
O Ministério Público de São Paulo, pelas razões apresentadas neste
artigo, se opõe firmemente à proposta.
Sob o pretexto de atualizar a legislação contra o abuso de autoridade, o
Senado Federal corre o risco de produzir um diploma legal que institui o abuso
contra as autoridades. Isso fortalece as organizações criminosas e enfraquece a
sociedade. Definitivamente, isso não é razoável!
Gianpaolo Smanio é procurador-geral de Justiça do Estado de São Paulo,
doutor pela PUC-SP e professor da Universidade Mackenzie