segunda-feira, 16 de março de 2009

Politização do direito

Valor Econômico - Legislação & Tributos - 16.03.09 - E2

Ativismo judicial e fetichismo constitucional
Luciano Benetti Timm
16/03/2009

Paradoxalmente, não é na conduta dos agentes econômicos que se deve esperar o maior risco na adaptação da economia à crise. É do Estado brasileiro que se pode antever o pior cenário. O Poder Executivo tem dado nos últimos anos um sinal de elevado grau de gasto público - que ultrapassou em muito o crescimento do PIB. Já o Legislativo parece mais um balcão de interesses e de negócios, se levarmos a sério as recentes denúncias feitas por parlamentares em tribunas e em entrevistas nos principais periódicos nacionais. Contudo, não se está percebendo de onde venha talvez o maior risco à estabilidade das relações empresariais, justamente do órgão que menos se esperaria outrora: o Poder Judiciário.

Se antigamente entendiam os juristas e juízes que cabia aos magistrados apenas a inercial aplicação da lei posta pelo parlamento, nos ditames na clássica tripartição de poderes, hoje já não há mais este pensamento uniforme no país. Atualmente os ventos sopram em favor do assim chamado ativismo judicial, ou seja, o reconhecimento de um papel de protagonismo social ao magistrado, cabendo a ele contribuir para promoção da justiça social. Isso já foi empiricamente comprovado por pesquisas do economista Armando Castelar Pinheiro e depois confirmado em posteriores levantamentos da Associação Brasileira dos Magistrados (AMB).

Isso faz com que os magistrados busquem, na melhor das boas intenções, interferir mais nas relações privadas, como no caso de propriedade e contratos, mas com equivocados instrumentos de política pública - porque restritos a um processo e a uma sentença - e fundados em uma insuficiente metodologia científica, já que a formação de bacharelado em direito centra-se no ensino da legislação tão somente e não de mecanismos estatísticos e formais e a maioria dos magistrados não tem nível de mestrado.

A isso se soma um fetiche constitucional que se tem espalhado no Brasil, a partir da proliferação de cursos de pós-graduação. Um simples exame dos recentes cursos aprovados pela Capes demonstrará que quase todos, senão todos os novos programas têm como título "Constituição", "Democracia" e outros nomes menos votados do direito público, trazendo uma onda constitucionalizante do ordenamento jurídico inclusive para o âmbito do direito privado - leia-se civil, comercial e trabalhista.

Nesse sentido, uma Constituição Federal foi feita em 1988, como desfecho de um processo de democratização do país e na qual se inseriram diversos dispositivos de inspiração social - como função social, dignidade humana e justiça social -, com um objetivo (ou sonho) que seria o de transformar uma sociedade altamente injusta a partir da mera alteração do texto legal. O ministro do Supremo Tribunal federal (STF), Eros Grau, inclusive chama a parte inaugural da Constituição Federal, particularmente seu artigo 3º, de "cláusula transformadora".

Tais valores ou princípios são suficientemente vagos para ensejar um uso ideológico da sentença judicial, que passa então a dar voz a aspirações políticas dos magistrados - que, diga-se de passagem, não passaram por qualquer processo eleitoral, mas por concurso de conhecimentos técnico-jurídicos -, o que é visto por muitos como positivo, o que não é de se surpreender. É a assim chamada "politização do direito". A Constituição e alguns de seus mais importantes valores e princípios passam a servir para desconstruir a ordem legal infraconstitucional em julgamentos casuísticos e fundados quase que apenas na própria Constituição.

Exemplos disso foram decisões judiciais curiosas como a do Tribunal Regional do Trabalho (TRT) de Campinas, que, em um dissídio coletivo, concedeu uma liminar proibindo a demissão de funcionários da Embraer. Ou de um juiz do Estado do Mato Grosso que suspendeu a busca e apreensão de tratores e outros implementos agrícolas pelas instituições financeiras por meio da concessão de uma liminar em uma ação coletiva movida pelo Sindicato dos Produtores Rurais, a fim de que os produtores mantivessem a posse dos bens financiados e não pagos. A mais infeliz foi uma decisão do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJRS), que se negou a conceder uma medida liminar de reintegração de posse a um produtor rural de uma fazenda invadida pelo Movimento dos Sem-Terra (MST) por não ter ele comprovado o atendimento da função social da propriedade, quando se sabe que o Código de Processo Civil não exige esse requisito. Mas há os casos do fornecimento de medicamentos, de água, de luz...

O problema não termina aí. A criatividade judicial, por si mesma, não é negativa. A dificuldade é que não existe um sistema eficiente de uniformização de precedentes. Há muita resistência no próprio Supremo à súmula vinculante (em quatro anos não se chegou a cinco) e não raro um mesmo tribunal toma decisões conflitantes por suas câmaras, em um verdadeiro sistema esquizofrênico. Ou seja, a aleatoriedade para quem precisa recorrer ao Poder Judiciário é quase total.

A cultura judicial "social" e protetiva do mais fraco, associada a dispositivos legais e constitucionais vagos e indeterminados e a um sistema processual lento e falho para uniformizar precedentes, geram um importante fator desestabilizador de expectativas normativas, deixando agentes econômicos absolutamente sem referência. Pior, a ordem jurídica acaba inflexibilizando as soluções criadas pelo próprio mercado para se adaptar e para fazer frente à crise.

O Brasil precisará de um Judiciário educado em economia e nas leis vigorantes no país para que aplique bem a recuperação judicial, novos arranjos contratuais e mesmo novas soluções negociadas no direito do trabalho. Para isso, a Constituição de 1988 e seus vagos conceitos indeterminados, pelo menos se interpretada com o grau de rigidez que a maioria dos constitucionalistas vem dando ao seu texto nos últimos anos, é um empecilho.

Enganam-se os que acham que toda a culpa da crise financeira e econômica mundial foi a falta de regulação dos mercados. Não se deve esquecer que o ambiente legal brasileiro é absolutamente diverso do americano. Aqui é tudo ultrarregulado e ultraestatizado. A crise virá por outros motivos e poderá permanecer mais tempo também por outras razões. Assim, silenciosamente, a partir da década de 90 do século XX no Brasil, privatizou-se a economia, mas estatizou-se o direito. Vamos em breve ver o resultado disso, ainda mais com uma maciça composição do Supremo nomeada pelo presidente Lula.

Luciano Benetti Timm é advogado, presidente da Associação Brasileira de Direito e Economia, professor adjunto da Pontifícia Universidade Católica (PUC) do Rio Grande do Sul e pós-doutorado na Universidade de Berkeley, na Califórnia

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Eis o veículo (Motorella) que tenho utilizado para andar na ciclovia da Lagoa e ir ao trabalho sem suar