Jornal
Valor Econômico – Legislação & Tributos – 04.11.2015 – p. E2
Por Luiz Kignel
04/11/2015
05:00
Há
alguns dias, o direito de família recebeu uma provocação jurídica: a notícia da
formalização por meio de escritura pública lavrada em cartório de notas da
cidade do Rio de Janeiro de uma união estável entre três mulheres. Há quem
diga não ser o primeiro caso, se considerada a escritura pública lavrada no ano
passado entre um homem e duas mulheres na Comarca de Tupã, Estado de São Paulo.
Baseados no princípio da dignidade humana e na premissa de que o conceito de
família é plural e aberto, ambos os trios seriam reconhecidos como famílias
poliafetivas. Como sustentação dessa inovação familiar, os defensores da ideia
alegam que as relações homoafetivas indicaram uma nova visão do conceito de
família, abrindo margem a aceitação das relações tripartites.
A
vinculação me parece descabida. A união entre homem e mulher, tal qual a união
homoafetiva, respeita o princípio da família monogâmica. As relações pelo
casamento civil ou união estável não podem ser plurais. Valerse da aceitação da
união estável homoafetiva para abraçar a tese da família poliafetiva é diminuir
a conquista da união entre pessoas do mesmo sexo, como se para elas tudo fosse
permitido. Os conviventes homoafetivos, reconhecidos e respeitados pelo
ordenamento jurídico pátrio, também buscam a família monogâmica, tanto que
conquistaram o seu reconhecimento como entidade familiar.
Se
do ponto de vista do direito constitucional a família poliafetiva é
indefensável e do ponto de vista social e não estritamente jurídico possa
causar arrepios, há muitas questões que não foram enfrentadas pelos defensores
da nova tese: optando o trio pelo regime da comunhão parcial de bens disposta
no artigo 1.725 do Código Civil, como se define meação entre três pessoas?
Divergindo o trio do exercício do poder familiar sobre os filhos comuns as
decisões serão tomadas por "maioria simples" ou fica assegurado ao
dissidente recorrer ao juiz para solução do desacordo fundado no parágrafo
único do artigo 1.631 do Código Civil?
Já
se o primeiro convivente pretender dissolver a união estável por não desejar
manter vínculos com o segundo convivente, mas esse segundo segue apaixonado
pelo terceiro convivente que, por sua vez, não quer perder o vínculo com o
primeiro convivente, como será feita a dissolução parcial da união estável? No
falecimento, os parentes suscetíveis de herança em segundo grau de um
companheiro falecido excluem os parentes suscetíveis de herança em terceiro
grau de outro companheiro falecido por força do disposto no artigo 1.840 do
Código Civil?
A
Lei nº 6.515, de 1977, promulgada após incansáveis 20 anos de luta do senador
Nelson Carneiro, revogou o conceito da indissolubilidade do casamento civil,
apagando o desquite de nosso ordenamento jurídico e instituindo o divórcio. O
artigo 226 da Constituição Federal de 1.988 trouxe nova luz ao direito de
família admitindo a necessária proteção do Estado aos que optaram pela união
estável. E mais recentemente, pelas mãos do Judiciário, foi reconhecido o
direito dos casais homoafetivos, seja no formato de união estável ou casamento
civil. Em todos esses avanços se defendia a família originada em duas pessoas
desimpedidas e, mais recentemente, sem distinção de sexo.
Não
há fundamentação jurídica nem desejo social de uma ruptura do conceito
monogâmico que segue prevalecendo em nossa sociedade que, não por isso, segue
igualitária e pluralista. Ser igualitário é também reconhecer a necessidade de
se impor limites, não ao debate como aqui se faz , mas ao sabidamente aceitável
dentro de uma sociedade maior. É na lembrança da figura do médio cidadão romano
que conhecemos a razoabilidade do indivíduo que, longe do tecnicismo e do
conhecimento das leis, sabia o limite dos direitos, mas também das obrigações
para a convivência em sociedade.
Não
se entenda deste artigo a intenção de sugerir vedar a três ou mais pessoas (por
que não?), o pleno direito de decidirem sua própria felicidade vivendo sob o
mesmo teto, formando patrimônio comum e tornandose compromissadas da forma que
melhor lhes aprouver. Certamente encontrarão no direito brasileiro os
instrumentos jurídicos que lhes garantam expressar sua livre manifestação de
vontade. Disto salta enorme distância ao pretenderem inovar no direito de
família para não mais ampliar, como corretamente se fez no reconhecimento das
uniões homoafetivas, mas sim introduzir um formato de família poliafetiva sem
qualquer amparo nos princípios resguardados pela nossa Constituição Federal.
Os
que pugnam pela família poliafetiva certamente poderão se valer de estruturas
societárias para gestão do patrimônio comum e de declarações recíprocas no
âmbito do direito contratual para instituírem direitos e obrigações sobre os
quais poderão livremente dispor. Podem e devem fazêlo, com os nossos mais sinceros
votos que, respeitando o direito de família, sejam contratualmente felizes.
Luiz
Kignel é sócio do escritório PLKC advogados, professor convidado do curso de
preparação de herdeiros da Fundação Getúlio Vargas (GVPECSP) e, professor
convidado do curso de empresas familiares da GVLaw São Paulo.