quarta-feira, 19 de novembro de 2008

Processos para fornecimento de remédios ameaçam a sáude dos estados-membros


Valor Econômico - Especial - 19.11.08 - F2


Febre de processos judiciais ameaça saúde dos Estados
Aureliano Biancarelli, para o Valor, de São Paulo


Uma conquista rara no mundo garantida pela Constituição de 1988, a do acesso integral à assistência médica e aos medicamentos, ameaça levar a saúde brasileira à falência. Com base no princípio de que a saúde é um direito de todos e um dever do Estado, vem crescendo o número de pacientes que recorrem à Justiça para ter o medicamento que não consta das listas dos órgãos do governo, por ser mais caro ou por ainda não estar disponível no país. A disputa entre o direito à vida e a finitude dos orçamentos cria um impasse que só um pacto entre sociedade e governo poderá resolver. A situação já vem sendo chamada de "epidemia da judicialização", com "vírus" já bastante conhecido, mas de tratamento ainda incerto.
Ruy Baron/Valor
Reinaldo Guimarães: "Ministério não é contra recurso à Justiça. É contra a epidemia de processos que estamos vivendo"
"Em dez anos, se nada for mudado, todo o sistema de saúde estará quebrado. O orçamento destinado a todas as ações de saúde será consumido pela compra de medicamentos via judicial", diz Osmar Rota, secretário da Saúde do Rio Grande do Sul, um dos Estados que mais gastam em tratamentos obtidos pela via judicial. Rota é também o presidente do Conass, o conselho que reúne todos os secretários de Saúde dos Estados. Fala, portanto, em nome dos órgãos de saúde mais afetados.
Os medicamentos oferecidos pelos governos se dividem entre os básicos, encontrados em unidades de saúde e vendidos a baixo preço nas farmácias populares, e um segundo grupo, que consta das listas de remédios de prescrição excepcional. O Ministério da Saúde tem uma lista geral, mas Estados mais ricos, como São Paulo, têm as suas próprias, com um número maior de drogas. Para todos esses remédios, quando não estão em falta, basta uma prescrição médica. No terceiro grupo estão os medicamentos pedidos pelo médico mas que não constam das listas, muitos deles que ainda não foram aprovados pela Anvisa ou são considerados experimentais. A maioria dos medicamentos é paga pelos Estados, e as ações são dirigidas contra as secretarias e municípios, embora o ministério venha arcando com cerca de 10% desses encargos.
A Secretaria da Saúde de São Paulo - Estado que mais investe em medicamentos - informa que foram gastos R$ 400 milhões com o cumprimento de ações judiciais para atender a cerca de 30 mil pacientes ao longo de 2007. O programa de medicamentos excepcionais da pasta custa cerca de R$ 1 bilhão por ano, atendendo a 400 mil pessoas.
Segundo Osmar Rota, só no Rio Grande do Sul, foram movidas 20 mil ações contra a secretaria no último ano. Das 120 mil pessoas que se beneficiam dos medicamentos de prescrição excepcional, 15% conseguiram acesso por meio de ações judiciais. Esses 15% representam 30% do total dos recursos da secretaria e significam apenas 1% dos habitantes do Estado. Um paciente com hepatite C, por exemplo, pode receber o interferon alfa a um custo de R$ 1.500 por seis meses, mas muitos entram na Justiça para obter o interferon peguilato, que custa R$ 40 mil pelo mesmo período. "Para o paciente, o resultado é exatamente o mesmo", na opinião do secretário. Para os cofres da secretaria, é um rombo.

Aqui começa o lado mais delicado dessa discussão. A primeira questão é a do direito à vida, ou à saúde, garantido pela Constituição. Quando um médico diz que a vida de tal paciente depende de determinada droga, por mais cara que seja, é esperado que a Justiça garanta a ele esse direito. E tem sido assim, na grande maioria dos casos. O tratamento de pacientes vítimas de erros inatos do metabolismo, por exemplo, quando contam com reposição enzimática disponível no mercado internacional, custa de US$ 50 mil a US$ 200 mil por ano. Como a doença não tem cura, a droga garantirá uma melhor qualidade de vida por um determinado número de anos.
A vida não tem preço, mas pode ser estimada com uma máquina calculadora, distribuindo esses gastos individuais pelo custo do atendimento às populações. Nesse ponto, o direito individual do paciente se choca com o conceito de saúde pública, onde os Estados devem se preocupar com as pessoas no seu conjunto, mais do que com os indivíduos isoladamente. Mas a questão que alimenta os que condenam a judicialização é o abuso desse recurso.
De acordo com o Ministério da Saúde, os gastos com processos para aquisição de remédios aumentaram em 1.920% em três anos. De janeiro a julho deste ano foram 783 ações judiciais com pelo menos R$ 48 milhões em gastos. Em 2007, foram R$ 15 milhões e em 2005, R$ 2,5 milhões.
Estes dados se referem apenas à esfera da União. O médico Luiz Carlos Romero, consultor legislativo do Senado na área da saúde, especialista no tema da judicialização, diz que o número de ações sofridas pelo Ministério Saúde corresponde a cerca de 10% do total movido contra Estados e municípios. Significa que de janeiro a julho deste ano seriam cerca de 8.000 processos, com custos que podem beirar os R$ 500 milhões. Num levantamento que fez no Distrito Federal, Romero concluiu que os 40 pacientes que recebiam remédios excepcionais via Justiça consumiam o mesmo que toda a população de Brasília em medicamentos.
Reinaldo Guimarães, secretário de ciência, tecnologia e insumos estratégicos do Ministério da Saúde, diz que o orçamento deste ano para medicamentos é de R$ 5,2 bilhões, cerca de um décimo de todos os gastos do SUS. Desde total, R$ 2,3 bilhões estão destinados a medicamentos de prescrição excepcional e pelo menos R$ 100 milhões devem ser gastos com ações na Justiça.
"O ministério não é contra o recurso à Justiça. É contra a epidemia de processos judiciais que estamos vivendo", diz Guimarães. "Alguns são absolutamente legítimos, mas outros pedem medicamentos que sequer são comercializados ou autorizados no país, ou estão em fase de pesquisa. Ao aceitar isso, estamos estimulando o uso não racional do medicamento."
Vários Estados tentam resolver essa questão por meio de um entendimento entre governo, magistrados e procuradores. No Rio Grande do Sul, diz Rota, depois de vários encontros, chegou-se a um "termo de ajuste de conduta", onde se define que todo medicamento será garantido, desde que faça parte dos protocolos clínicos e diretrizes do Ministério da Saúde. "Muitas vezes os medicamentos eram prescritos em doses erradas, até para patologias incorretas", diz Rota. "Chegamos à conclusão que 20% de todo o gasto com esses medicamentos eram jogados fora."

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