quarta-feira, 2 de julho de 2008

Sucessão trabalhista nas concessões de serviço público

Valor Econômico - Legislação e Tributos - 26.07.08 - E1

As concessionárias e a Justiça trabalhista
Gustavo Justino de Oliveira

Na década de 90, no auge dos processos de desestatização e de privatização, foram firmados inúmeros contratos de concessão de serviços públicos em setores como transportes, energia elétrica e telecomunicações. Nesse contexto, surgiram no âmbito da Justiça do trabalho muitos questionamentos sobre responsabilidades por débitos trabalhistas - se dos entes ou empresas estatais ou se das novas concessionárias dos serviços públicos, definidas como sucessoras dos entes públicos que, antes da desestatização, prestavam tais serviços.
A sucessão trabalhista configura-se quando há alteração na titularidade da empresa ou de parte dela, mantendo-se o conjunto patrimonial afetado a um fim econômico. Tanto no direito do trabalho quanto no direito comum, supõe-se uma substituição de sujeitos de uma relação jurídica. No que diz respeito às desestatizações, o Tribunal Superior do Trabalho (TST) buscou pacificar a discussão, publicando a Orientação Jurisprudencial nº 225, da Seção de Dissídios Individuais nº 1, que estabelece que "I - em caso de rescisão do contrato de trabalho após a entrada em vigor da concessão, a segunda concessionária, na condição de sucessora, responde pelos direitos decorrentes do contrato de trabalho, sem prejuízo da responsabilidade subsidiária da primeira concessionária pelos débitos trabalhistas contraídos até a concessão; II - no tocante ao contrato de trabalho extinto antes da vigência da concessão, a responsabilidade pelos direitos dos trabalhadores será exclusivamente da antecessora."
Contudo, grande parte da jurisprudência, em especial a dos tribunais regionais do trabalho (TRTs), vêm entendendo pela inaplicabilidade da Orientação Jurisprudencial nº 225, com apoio na proteção do trabalhador - como o TRT da 4ª Região no Processo nº 01709-1998-811-04-00-2, relatado pelo juiz Ricardo Carvalho Fraga. Entretanto, é comum que as decisões proferidas pelos TRTs em contrariedade à Orientação Jurisprudencial nº 225 sejam parcial ou totalmente reformadas pelo TST, quando interposto recurso de revista - como no caso do Recurso de Revista nº 707.477, de 2000, relatado pelo juiz Alberto Bresciani.
Em que pese a tradicional orientação da jurisprudência trabalhista nessa temática, impõe-se um entendimento mais flexível na espécie, com o intuito de conformar eventuais soluções acerca do passivo trabalhista das concessionárias de serviço público federal às regras e aos princípios do direito público. A racionalidade do direito do trabalho há de ser obrigatoriamente permeada pela racionalidade do direito público, sob pena de serem feridos princípios e preceitos constitucionais, assim como ofendidas várias regras de direito público contidas na legislação das desestatizações e das concessões de serviço público.
A forma como a Justiça trabalhista vem tratando os passivos de contratos de concessão de serviço público é inadequada
A finalidade da atual configuração da sucessão trabalhista, nos moldes fixados pela jurisprudência mais recente, é a de garantir ao trabalhador a satisfação de seus direitos, ainda que haja alteração na titularidade da empresa ou que esta venha a sofrer qualquer outra transformação jurídica. Porém, essa orientação há de ser atenuada quando envolve entidades de direito público que foram sucedidas por entidades de direito privado.
A uma, porque o momento da transferência da responsabilidade pelos débitos trabalhistas é marcado pela entrada em vigor do contrato de concessão de serviço público, no qual funda-se a delegação pela execução do serviço, e a decorrente assunção, pelo concessionário, da responsabilidade pelos encargos decorrentes dos contratos de trabalho que não tiveram solução de continuidade.
A duas, porque, se a intenção é a proteção do trabalhador que prestava seus serviços à entidade pública, e passa a prestá-los junto à empresa concessionária de direito privado, nenhum risco ele estará correndo em relação à satisfação de seus créditos referentes a um momento anterior ao da celebração do contrato de concessão. É que, considerando-se que a responsabilidade exclusiva pelos débitos trabalhistas é da entidade pública titular do serviço que está sendo delegado à empresa concessionária privada, a entidade pública é sempre solvente, não havendo riscos para que o trabalhador venha a receber integralmente tudo o que eventualmente tenha direito. Entender contrariamente ao exposto implica oficializar uma hipótese de enriquecimento sem causa por parte da entidade pública titular do serviço público, o que contraria frontalmente o artigo 5º, inciso XXII, o artigo 37, parágrafo 6º e o artigo 175, caput, todos da Constituição Federal de 1988.
A três, porque há preceitos legais e cláusulas contratuais que disciplinam as obrigações, direitos e deveres do poder concedente e da empresa concessionária do serviço público. Por exemplo, nas licitações correspondentes aos processos de desestatização concretizados sob a modalidade de leilão, a delegação do serviço somente somente foi operacionalizada diante do compromisso assumido pelas concessionárias em efetuar pagamentos mensais ou trimestrais ao poder concedente. Parece claro que o montante resultado desses pagamentos deveria, entre outras finalidades, possibilitar ao poder concedente desincumbir-se de eventuais ônus envolvendo a prestação do serviço público de sua titularidade. É o caso do pagamento de eventuais passivos trabalhistas, de única e exclusiva responsabilidade do poder concedente, nos moldes acima delineados. Do contrário, além de reforçar o precedente argumento do enriquecimento sem causa do poder concedente, significaria uma afronta direta ao princípio constitucional do equilíbrio econômico-financeiro do contrato de concessão de serviço público, previsto no artigo 37, inciso XXI, combinado com o artigo 175, caput e parágrafo único, inciso I da Constituição de 1988, assim como no artigo 10º da Lei nº 8.987, de 1995.
Assim sendo, entendemos inadequada a forma como a Justiça trabalhista vem tratando da problemática envolvendo os passivos trabalhistas referentes a determinados contratos de concessão de serviço público, pois os argumentos e preceitos de direito público acima elencados sequer foram considerados na construção jurisprudencial que está prevalecendo atualmente. Por isso, as decisões que impingem responsabilidade direta das concessionárias sobre débitos trabalhistas contraídos anteriormente ao período de vigência do contrato de concessão são absolutamente teratológicas, agridem diversos preceitos da Constituição de 1988 e diversas regras inseridas na legislação federal relativa ao programa de desestatização e ao regime geral dos contratos de concessão de serviços públicos.
Gustavo Justino de Oliveira é pós-doutor em direito administrativo pela Universidade de Coimbra, professor de direito administrativo da Universidade de São Paulo (USP) e advogado e sócio-fundador do escritório Justino de Oliveira Advogados Associados

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