quarta-feira, 23 de abril de 2008

Prisão civil e STF

Valor Econômico - Legislação & Tributos - 23.04.08 - E2
O Supremo, os direitos humanos e a prisão civil
Renato Stanziola Vieira

Já não há quem duvide que existe algum fundamento na célebre frase de Edward Hughes segundo a qual a Constituição, em último grau, é o que o Supremo diz que ela é. Diuturnamente países dotados de Suprema Corte (Estados Unidos, Canadá, Argentina) ou Tribunal Constitucional (Alemanha, Portugal, Espanha, Itália) se submetem às decisões das cortes que, em matéria constitucional, têm o chamado privilégio - ou pecado capital dos sistemas jurídicos - de errar, ou acertar, por último.
Por trás desta sedutora divisão de responsabilidades na condução dos assuntos de cada república, mal se esconde outro truísmo lembrado pela teoria constitucional: interpretar a Constituição é reformulá-la, alterá-la mediante a dação de sentido que advém do uso da linguagem. O sentido, pois, de cada norma jurídica que decorre de análise e, portanto, decisão judicial, vem, por que não dizer como antítese de Montesquieu, da boca do juiz. A lei não existe senão depois de sua interpretação.
Dentre tantos exemplos de protagonismo judicial, pode-se colher, no Brasil, a alvissareira - ainda que já tardia - sinalização de mudança de entendimento na Suprema Corte acerca das hipóteses de cabimento da prisão civil em casos de dívida por depósito de bens - artigo 5º, inciso LXVII, da Constituição Federal. Como os entendimentos dos ministros Marco Aurélio Mello (Habeas Corpus nº 87.585), Gilmar Mendes (Recurso Extraordinário 466.343) e, agora mais recentemente Celso de Mello (Habeas Corpus nº 85.757) deixam fora de dúvida, a evolução em curso na corte tende a privilegiar o princípio fundamental da dignidade da pessoa humana e, por isso, convencer a sociedade acerca da distinção de tratamento que merecem os tratados negociais assumidos pelo Brasil, e os tratados afetos a matéria que envolva direitos humanos. Mais que uma evolução na jurisprudência, a consolidação dessa linha de pensar significa uma revolução.
A mudança do paradigma em curso no Supremo Tribunal Federal (STF), dê-se-lhe ou não os atributos de vinculação obrigatória e eficácia geral, constituiu-se como precedente fundamental a ser publicizado a todos os que proclamam a efetividade máxima das normas jurídicas protetivas dos direitos humanos; quer estejam positivadas formalmente na Constituição, quer integrem o bloco de constitucionalidade por decorrência da via de acesso do parágrafo 2º, do artigo 5º, e após a Emenda Constitucional nº 45, de 2004, também por força do parágrafo 3º do mesmo artigo da Constituição. Enfim, já o disse Konrad Hesse em lição repetida e nem sempre compreendida, aos que tenham vontade de Constituição.
E como disse o ministro Celso de Mello em passagem emblemática que, acredita-se com tristeza, ainda não é compreendida por muitos integrantes do Poder Judiciário brasileiro: "Assiste, desse modo, ao magistrado, o dever de atuar como instrumento da Constituição - e garante de sua supremacia - na defesa incondicional e na garantia real das liberdades fundamentais da pessoa humana, conferindo, ainda, efetividade aos direitos fundados em tratados internacionais de que o Brasil seja parte. Essa é a missão socialmente mais importante e politicamente mais sensível que se impõe aos magistrados, em geral, e a esta Suprema Corte, em particular."
Já não era sem tempo de se ver a Constituição em contexto global, sob a luz da proteção dos direitos humanos
A novidade do entendimento a se formar no nosso mais alto tribunal tem raiz filosófica bem conhecida, qual seja, aquela segundo a qual pelo fato de o ser humano ser um ente com fim em si, não se conceber possa servir de objeto à felicidade alheia. Dignidade (Würdigkeit) não se compadece com a noção de preço (Wert) e, por isso, para a satisfação de bem material não se concebe a supressão da liberdade individual de quem quer que seja. Incrível que, como salientado pelo ministro Celso de Mello, desde a "Lex Poeteria Papillia", no século V a.C já fosse assim, tenha sido preciso levar séculos para se intuir tal realidade.
E é salutar que os ministros da Corte Suprema, atentos à evolução da humanidade, fundamentem o acertado entendimento com base na normatividade constitucional que advém de tratado e pacto de direitos humanos subscritos pela República Federativa do Brasil em seu exercício soberano há já mais de quinze anos, como é a situação, respectivamente, do Pacto de San José da Costa Rica, artigo 7º, e do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, artigo 11.
Já não era sem tempo de se ver a Constituição em contexto global, ao menos sob a luz da proteção dos direitos humanos e à necessária prevalência da norma que proteja, com maior amplitude, o ditame da dignidade da pessoa humana. Disse-o bem o Ministro Gilmar Mendes, a partir de lições de Peter Häberle: "É necessário assumir uma postura jurisdicional mais adequada às realidades emergentes em âmbitos supranacionais, voltadas primordialmente à proteção do ser humano."
Assiste-se, neste momento, com positiva expectativa, ao exercício de sábia humildade dos integrantes da Suprema Corte que, com lances de mestres, têm provocado seus pares a rediscutir a prisão civil decorrente de depósito infiel com vistas a melhor se garantir os inalienáveis direitos do homem.
A mudança que se avizinha assume distinta perspectiva jurídica e ética, pois na medida em que se deve assumir a deferência constitucional que os tratados de direitos humanos merecem, tutela-se com eficácia desejável a própria dignidade da pessoa humana. Não há desacordo moral que possa impedir ou nublar a visão do último intérprete sobre a proteção desse direito positivo.
Renato Stanziola Vieira é advogado criminalista, mestre em direito constitucional pela Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São Paulo e sócio do escritório Andre Kehdi e Renato Vieira Advogados

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