quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

Intervenção regulatória no mercado de capitais

Jornal Valor Econômico -O dirigismo estatal no mercado de capitais - 11.02.2010 - E4
O dirigismo estatal no mercado de capitais

Augusto Carneiro de Oliveira Filho
11/02/2010
Quando das discussões sobre a reforma da Lei das Sociedades Anônimas, que resultaram na Lei nº 10.303, de 2001, muito se falou sobre uma alteração impositiva no limite de emissão das ações preferenciais, sem direito de voto ou com voto sujeito a restrições. O limite de emissão das preferenciais, originariamente previsto na Lei nº 6.404, de 1976, permite que alguém com 16,6% do capital total de uma companhia exerça seu controle, fato que, erroneamente, muito se disse que era uma peculiaridade da lei brasileira inexistente nos mercados de capitais mais desenvolvidos. Pretendeu-se, naquela ocasião, impositivamente, reduzir esse limite ou até extinguir as ações preferenciais. A redação da Lei nº 10.303 resultou salomônica: reduziu esse limite, mas preservando as situações já existentes, evitando inclusive uma grande celeuma jurídica.

A unificação das ações e a consagração do princípio de "uma ação, um voto" acabou vingando no Brasil por outra forma, não impositiva. Com o desenvolvimento do Novo Mercado da Bovespa, consolidou-se a unificação num universo expressivo de companhias, tanto novas como outras já existentes, mas que se adaptaram para poder aderir ao Novo Mercado. Foram ali confirmadas as previsões de que a unificação das ações, assim como a prática da boa governança corporativa, eram reconhecidas pelos investidores como um diferencial, o que acabaria agregando valor às ações e abriria espaço para o desenvolvimento da companhia, pela sua melhor inserção no mercado de capitais.

O aspecto mais positivo desse processo foi que a unificação das ações resultou das forças de mercado e não da intervenção do Estado, contrariamente à tradição do nosso país.

Mais recentemente, o desenvolvimento espontâneo do mercado acabou sendo comprometido pelo retorno intenso do intervencionismo estatal. Os exemplos são muitos. Um deles é a posição da CVM, objeto do Parecer de Orientação nº 36, de 2009, de que a eliminação das chamadas "poisons pills" não terão os efeitos estatutariamente previstos. Quando da popularização das companhias sob controle difuso, cujo capital é pulverizado, sem controlador claramente definido, essa dispersão acionária foi considerada tão relevante, que essas companhias usualmente traziam regras estatutárias voltadas a protegê-la, as "poison pills". Elas inibiam a tomada de controle, impondo a realização de ofertas públicas com preços mínimos e eram, elas próprias, protegidas pelos estatutos. Se os acionistas pretendessem eliminar do estatuto as "poison pills", essa operação gerava autonomamente a obrigação de ofertas públicas, igualmente inibidoras.

Tudo funcionou às mil maravilhas até que esse sistema viesse a ser testado na prática. Quando as temidas abordagens para tomada de controle vieram efetivamente a acontecer, a interpretação sobre as "poisons pills" se inverteu diametralmente. Essas regras passaram a ser vistas como contrárias aos interesses dos acionistas e das próprias companhias. A CVM manifestou o entendimento de que a exclusão da "poison pills" do estatuto não sofre as restrições originariamente previstas. Com isso se abriu oportunidade para a consolidação do controle das companhias sob controle difuso em duas sucessivas etapas: primeiro se elimina as "poison pills" e, na segunda, o controle é adquirido, sem a necessidade da oferta pública e dos preços mínimos.

Outro exemplo desse processo intervencionista é a pretendida mudança das regras de regência do Novo Mercado, agindo a Bovespa e os fóruns de aprovação dessas normas, de certa forma, como os agentes estatais de intervenção. Sem adentrarmos no seu inquestionável bom propósito, o fato é que as alterações pretendidas nas regras de regência do Novo Mercado acabaram por ter tal envergadura que muitas companhias ali admitidas podem chegar a avaliar até a conveniência de abandoná-lo. Agora, quando do ingresso no Novo Mercado, as companhias se sujeitaram a ofertas públicas se viessem a deixá-lo.

Esses exemplos demonstram o processo dialético no âmbito do qual se desenvolve o mercado de capitais brasileiro. Por um lado, o mercado se desenvolve como resultado direto da influência dos seus participantes, que premiam e estimulam determinadas práticas e desestimulam e desagiam outras, como todos vimos no processo do desenvolvimento do Novo Mercado. As companhias que adotam as práticas desejadas pelos investidores têm suas ações valorizadas e se inserem melhor no mercado de capitais. Aquelas que não as adotam têm suas ações desvalorizadas, defrontam-se com menor liquidez, sendo gradativamente abandonadas pelos investidores que, como dizem os americanos, votam com os pés - "voting with the feet". Do outro lado, o Estado e seus diversos órgãos inovam impositivamente nas práticas de mercado, editando regras cujos bons propósitos nem sempre acabam sendo plenamente atingidos.

Além disso, há a questão da mudança das regras quando os jogadores já estão em campo e a partida já se iniciou. Os investidores tomam suas decisões e os preços das ações são assim definidos tomando-se por base um contexto regulatório, que, se alterado, geralmente privilegia uma parte em detrimento das outras.

Há uma regra geral em direito que a lei boa usualmente é a lei velha, aquela já amplamente estudada por todos e inclusive já aplicada pelos tribunais. Quando as regras mudam, um dos frequentes efeitos maléficos é o de comprometer a segurança jurídica.

Evidentemente, as chamadas leis velhas são muito menos eficazes nas áreas mais dinâmicas da economia, notadamente nos mercados de capitais. Ali, se faz presente exatamente o fenômeno oposto, onde as regras tradicionais podem perder sentido sob a ótica de uma realidade altamente volátil, num processo assemelhado à esclerose.

Esse frágil equilíbrio entre a preservação das regras, com a maximização da segurança jurídica por um lado, e a necessidade de adaptar as normas às inovações de mercado, por outro lado, é um dos maiores desafios do legislador no campo do mercado de capitais e, principalmente, da CVM.

Augusto Carneiro de Oliveira Filho é advogado especialista em direito empresarial e tributário e sócio-responsável pelo setor societário do Escritório Siqueira Castro - Advogados do Rio de Janeiro.

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