sábado, 26 de dezembro de 2009

Críticas às propostas de mudanças para as ações coletivas

Valor Econômico - Legislação & Tributos - 06.11.09 -E2

Opinião Jurídica:
As mudanças para as ações coletivas


Caio Leonardo Bessa Rodrigues
06/11/2009

A história da defesa dos direitos fundamentais teve início na resistência do indivíduo ao Poder Constituído; evoluiu para a instrumentalização do Estado para a defesa de direitos sociais e econômicos, até chegar à defesa dos interesses difusos e coletivos. As ações coletivas estão na vanguarda desse processo: superam o indivíduo como legitimado ativo, e põem em seu lugar representantes de interesses supraindividuais. No Brasil, está em discussão uma reforma nas regras das ações coletivas apresentada pelo governo, por setores da magistratura e do Ministério Público ao Congresso Nacional como um projeto de consenso. Trata-se de um grande avanço capaz de colocar o Brasil à frente de outras nações; uma sistemática que garante acesso à Justiça, com eficiência, mediante a flexibilização das regras tradicionais do processo, dadas como antiquadas e em desacordo com uma leitura contemporânea da Constituição Federal. Mas esse consenso foi quebrado pela apresentação de cem emendas por 11 deputados de seis partidos (PT, PTB, PDT, DEM, PP e PSDB) ao substitutivo apresentado pelo relator na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania da Câmara dos Deputados. Das cem emendas, apenas três se alinham com o espírito original do Projeto de Lei nº 5.139, de 2009, que compõe o 2º Pacto Republicano. O dissenso não é sem razão.

A exposição de motivos com que o Executivo remeteu a matéria ao Congresso Nacional não faz qualquer menção às radicais mudanças propostas. Tampouco o parecer do relator na comissão o faz. Esses dois documentos não oferecem elementos para avaliar a extensão, a intensidade e o impacto do risco contido em cada dispositivo.

Esse projeto de lei dá outra leitura, quando não simplesmente suprime ou neutraliza princípios constitucionais e processuais como a estabilidade do processo, a inércia do Judiciário, a imparcialidade do juiz, a segurança jurídica, os pressupostos processuais, as condições da ação, as liberdades individuais, a ampla defesa e a ordem econômica. Todas essas mudanças visam a fortalecer o polo ativo, e a debilitar o polo passivo. O pressuposto universalizado da hipossuficiência do autor coletivo resulta, aqui, num modelo de paternalismo que consagra um perigoso ativismo judiciário, oferecendo ao Juiz e ao Ministério Público - independentemente de quem mova a ação - instrumentos para promoverem políticas públicas e imporem condutas, independentemente de previsão legal, aos ocupantes do polo passivo, em usurpação flagrante das atribuições do Poder Legislativo, do Poder Executivo e do próprio povo, de quem é preciso lembrar que não são representantes eleitos, nem sua encarnação institucional.

O juiz poderá alterar atos e fases do processo. Não haverá mais rito: o juiz decide o próximo passo. E o faz "para garantir a efetiva tutela do interesse coletivo": ou seja, para garantir o sucesso do pedido do autor. Pedido este que pode ser alterado, assim como a causa de pedir, em qualquer fase do processo até a sentença, e quantas vezes aprouver ao autor. A cada novo pedido, uma nova tutela antecipada pode ser concedida sem ouvir o réu. Em verdade, não será preciso sequer que o Autor peça a antecipação de tutela: o juiz poderá concedê-la por iniciativa própria. O juiz pode decidir sem provocação, nem pedido do autor em várias situações. Ausência das condições da ação ou dos pressupostos processuais não obstará a continuidade do processo até as instâncias superiores: A ação coletiva passa a ser um processo metamórfico em busca de uma razão para condenar o réu.

Chega-se ao extremo de permitir a intervenção na empresa para o cumprimento de Termo de Ajustamento de Conduta. A desconsideração da personalidade jurídica servirá para multar diretores de empresa ou agentes públicos. É dado um poder ao juiz e ao Ministério Público que nem sequer a administração tem, ela que é a detentora do poder de polícia.

O PL nº 5.139, de 2009 deriva da insatisfação de juízes e de membros do Ministério Público de não conseguirem obter sucesso frequente e rápido no modelo em que operam. Mas isto não pode resultar na completa desconstrução dos sistemas de defesa contra o abuso de autoridade, mediante a oferta de um processo desequilibrado em que o réu é posto em condição desfavorável perante um juiz parcial e interessado, e de um Ministério Público ocupado menos com a solução do litígio do que com o desenvolvimento de políticas públicas próprias, para cujo custeio terá à sua disposição tantos réus quantos couberem na imaginação de seus membros. Ou de associações. Ou de sindicatos. Ou de partidos políticos, aos quais o PL inovou, atribuindo legitimidade para propositura dessa ação.

O PL nº 5.139, de 2009, propõe um passo em falso na história da defesa dos direitos fundamentais, que leva a defesa de direitos coletivos e difusos a voltar-se contra a mãe de todos os direitos fundamentais - as garantias individuais. Como o uróboro, a serpente que morde a própria cauda, esse é um retorno ao início da história, com os indivíduos de novo sujeitos à opressão de outro tipo de suserano: um que não chefia o Executivo, que não faz a lei, mas que surge de dentro do Judiciário, e se vê sinceramente esclarecido e defensor da coletividade, sem notar o papel deletério das instituições democráticas a que se está propondo.

Caio Leonardo Bessa Rodrigues é sócio de Mattos Muriel Kestener Advogados, atua na área de relações governamentais e regulação

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