domingo, 27 de setembro de 2009

Crise no direito civil

Jornal do Commercio - Direito & Justiça - 24.09.09 - B-7

Tepedino: há crise no Direito Civil


GISELLE SOUZA

A introdução no ordenamento jurídico brasileiro de princípios como o da dignidade do ser humano, da legalidade ou da solidariedade social, pela Constituição de 1988, levou o Direito Civil, que regula a relação entre particulares, a enfrentar hoje uma crise sem precedentes. A afirmação é do professor titular da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) Gustavo Tepedino, em palestra no Primeiro Fórum de Debates Republicanos, promovido na noite de terça-feira, pelo curso de Direito das Faculdades Integradas Hélio Alonso (Facha), em Botafogo.

Segundo afirmou, a Carta de 1988 apenas é escoadouro de um processo de intervenção do Estado nas relações privadas, então reguladas pelo Direito Civil. No Século 19, os códigos criados pretendiam dar maior autonomia às relações entre particulares, assim como permitir que a burguesia ascendente pudesse comercializar e acumular recursos sem os entraves causados pela interferência do Poder Público. "O papel das codificações, neste período, foi precisamente o de separar o público do privado. Dizer: "aqui quem manda são os particulares". Os códigos, então, eram o anteparo para o cidadão no sentido de que ali o Estado não interferiria", explicou.

Tepedino afirmou que esse quadro começou a mudar a partir do Século XX, sobretudo nos idos de 1930, em que foram criadas normas com a finalidade de proporcionar maior equilíbrio ao mercado. "Verificou-se que a liberdade idealizada no Século XIX acabou servindo como uma autorização para que os mais fortes economicamente pudessem se fazer prevalecer nas contratações em face dos mais fracos, permitindo assim que os interesses dos proprietários se sobrepusessem ao dos não proprietários", afirmou.



intervenção. De acordo com o professor, foi na Carta Magna de 1988 que o legislador interveio mais diretamente. "A Constituição é o escoadouro de todo esse processo de intervenção. O legislador interveio diretamente nas relações privadas, no casamento e na família, na propriedade, nas relações de consumo e nos contratos em geral. Alguns dos nossos antigos civilistas criticaram muito a constituinte", lembrou o especialista, destacando que a interferência "provavelmente decorreu de um déficit de valores a respeito da privacidade e da vida".

Algumas das mais importantes leis criadas após a Constituição de 1988 incorporaram os seus princípios, explicou. "Isso justifica algumas normas muito conhecidas, como o Código do Consumidor, o Estatuto da Criança e do Adolescente, o Estatuto do Idoso, que são muito amplos. Eles não têm mais a característica de lei especial do passado, quando as normas se limitavam a especializar alguma coisa. São verdadeiros estatutos, que cuidam de setores inteiros e não somente do Direito Civil, mas também do processual ou adjetivo", disse.

Segundo afirmou, o Código de Defesa do Consumidor, por exemplo, consagra princípios constitucionais, assim como tipos penais e até regras de hermenêutica (interpretação). De acordo com ele, o objetivo é vincular não apenas o Estado, mas também os particulares, no que diz respeito às regras que visam ao bem-estar coletivo.

"Ao final do Século XX, se o Direito Público tem muito do que se orgulhar no sentido desse leque de ações que oferece com vistas a preservar o direito de voz e da legalidade dos contratos do Estado, com instrumentos como o habeas datas, para assegurar o acesso às informações pessoais, e um sem número de tutelas e cautelares, para nos proteger em uma democracia, o Direito Privado, ao contrário, talvez só tenha do que se envergonhar", afirmou.

"É em nome dessa liberdade que verificamos a violência infantil, o machismo vergonhoso que impõe os valores dos homens sobre as mulheres e os filhos, assim como o trabalho escravo em nome da liberdade da empresa privada. Em nome da liberdade da família ou do contrato, se criou uma espécie de salvo conduto para a imposição dos valores dos mais fortes. Por isso, o constituinte trouxe os princípios da dignidade da pessoa, que dever vincular não apenas o cidadão perante o Estado, mas também nós, contratantes perante o banco ou o fornecedor dos serviços. Essa ingerência vem das nossas carências", acrescentou.

De acordo com Tepedino, a sobreposição dos princípios constitucionais às relações privadas foi aderida pela magistratura, que se mostrou progressista em relação a essa questão e firmou jurisprudência sobre a necessidade de se levar em consideração o bem-estar público quando da apreciação de casos iminentemente particulares. Se, por um lado, isso se reverte em benefício da sociedade, por outro causou uma confusão entre o que pertenceria à seara do Direito Público ou Privado.

Segundo o professor, a questão se agrava com os avanços tecnológicos e implicações jurídicas que elas provocam. Nos últimos 20 anos, os tribunais se viram diante de processos que não podem mais ser "compartimentalizados" na categoria do Direito Público ou Privado. Ele citou como exemplo o primeiro processo relativo à investigação de paternidade julgado pelo Supremo Tribunal Federal (STF), ainda nos anos de 1990.



paternidade. O caso teve início com a ação de reconhecimento de paternidade na Justiça de Porto Alegre. O autor queria que o suposto pai realizasse o exame de DNA e fundamentava o pedido no princípio constitucional da dignidade do ser humano. O juiz responsável determinou a realização do exame, mesmo sem o consentimento do réu. O suposto pai, então, ingressou com habeas corpus no Tribunal de Justiça, que manteve a obrigação. Ele então recorreu ao STF, alegando que a decisão feria o princípio da legalidade - de que ninguém é obrigado a produzir prova contra si próprio - assim com os princípios da legalidade e da intimidade. Foram quatro votos vencidos, inclusive o do relator. Prevaleceu o entendimento de ministro Marco Aurélio Mello, de conceder o habeas corpus. "Esse caso é interessante, porque envolve Direito de Família - por isso, particular - que foi levado à Suprema Corte, inclusive dividindo-a", disse.

"Independente de quem ganhou ou perdeu, o mais importante foi que, naquele dia, a Suprema Corte disse que questões privadas, mas que dizem respeito à dignidade da pessoa, fazem parte da ordem pública constitucional e, portanto, estão sob a sua competência. Vale dizer que, mesmo em um contrato que firmo com um particular, se este envolver a dignidade, é então matéria de ordem pública. A questão deixa de ser privada no sentido antigo da palavra e passa a demonstrar a indispensabilidade de construirmos a ordem pública em que os valores constitucionais sirvam para definir os contornos e os limites da iniciativa privada", explicou.

Tepedino defende que leis anteriores à Constituição sejam aplicadas em conjunto com seus princípios. "A tarefa hoje é menos do legislador e sim do aplicador, ou seja, do juiz e do intérprete, que hão de transformar as leis frias em normas vivas de modo que possam resolver os problemas diários das pessoas", disse.

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