terça-feira, 19 de maio de 2009

Juizes positivistas x consequencialistas

O Judiciário na democracia


GISELLE SOUZA



As declarações de que os magistrados devem procurar se ater apenas a letra fria das leis ao julgarem os conflitos que lhes são submetidos, feitas pelo ministro da Suprema Corte Americana, Antonin Scalia, durante visita ao País, na semana passada, repercutiu entre os integrantes do Judiciário brasileiro. No Seminário Internacional Direito e Desenvolvimento entre Brasil e EUA - realizado na última sexta-feira, pela Harvard Law School Association of Brazil e a Escola de Direito do Rio de Janeiro da Fundação Getúlio Vargas (FGV), na sede da Escola de Magistratura do Rio (Emerj) - a principal questão debatida foi se os juízes estariam ferindo os princípios do estado democrático ao interpretar os dispositivos legais e até mesmo aplicá-los a casos ainda não regulamentados pela legislação ordinária ou sequer previstos na Constituição.

Antonin Scalia, homenageado no evento, afirmou que sim. O ministro explicou que a posição dele decorre da natureza jurídica norte-americana, cuja origem se encontra no sistema anglo-saxão. Os juízes, como instrumentos dos reis, também eram os responsáveis pela elaboração das leis. Hoje o quadro é outro, e as normas são elaboradas por representantes do povo. Portanto, na avaliação do juiz americano, não cabe à magistratura fazer leitura diferente das normas instituídas por quem foi legitimamente eleito pela sociedade para escrevê-las. "Os juízes são instrumentos no âmbito do sistema democrático e devem ser fiéis ao povo", afirmou Scalia.

Na avaliação de Scalia, é através de seus representantes que a sociedade manifesta sua vontade, por isso não é a função dos juízes determinar qual seria a melhor resposta para cada caso concreto, ao interpretar a lei e aplicá-la a situações às quais ainda não foram regulamentadas. "Ou somos regidos e governados por juízes ou por representantes eleitos do povo. Dizer que o juiz poderia dar uma resposta melhor é negar o sistema democrático", argumentou.

Nesse sentido, Scalia reclamou do tratamento dado aos magistrados que defendem posição semelhante. O ministro afirmou "que não dá para julgar os juízes pelas matérias que saem nos jornais", que acabam enfatizando apenas quem ganhou ou perdeu. "Se quem ganhou foi o bonzinho, o juiz é bom; se foi o mal, o juiz é ruim", criticou. "Não é assim que devemos tratar os juízes se quisermos que sejam intérpretes da vontade popular", defendeu.



LEGISLATIVO. Para Joaquim Falcão, integrante do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e diretor da Escola de Direito do Rio de FGV, o debate vai além de qual posição seria a mais adequada: se a dos positivistas ou legalistas, que dão ênfase ao texto legal, inclusive limitando-o; ou a dos interpretavistas ou consequencialistas, que vão além da letra fria da lei, modernizando-a a cada leitura. Em sua palestra, ele disse que o que está em jogo são as formas de institucionalização da democracia, que "varia de país para país, de época para época e de cultura para cultura".

"O que está em jogo é dizer qual é a natureza da separação dos poderes que a democracia pretende em cada um dos países. Os não interpretativistas, ou seja, aqueles que têm uma noção mais rigorosa e restrita, estão dando ênfase ao Legislativo. Dizem: "estamos aqui para interpretar o que os constituintes decidiram". Enquanto aqueles que interpretam o texto com maior liberdade enfatizam na democracia não o Legislativo, mas o Judiciário", afirmou.

O conselheiro do CNJ esclareceu a posição do ministro norte-americano: "Scalia se filia a primeira corrente. Diz: "se querem mudar a questão do abortou ou da união homoafetiva, que façam uma nova lei, pois não cabe ao juiz interpretar a Constituição de modo a entender que atualmente é algo possível", explicou.

Joaquim Falcão citou dois episódios que demostram como ocorre o debate legalistas versus interpretativistas no Brasil e nos EUA. Um foi a resposta do ministro Gilmar Mendes, presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), a Joaquim Barbosa, também ministro daquela corte, durante desentendimento em sessão de julgamento. Barbosa disse que estava atento às consequências de suas decisões, e Mendes retrucou dizendo que todos os demais ministros também agiam assim.

O outro caso se deu nos EUA, quando o presidente Barack Obama manifestou a intenção de indicar um juiz para a Suprema Corte que tivesse mais simpatia com as esperanças do povo, ou seja, fosse um consequencialista. "Então, o que está em jogo, dentro dessa ótica do presidente Obama e da discussão entre os ministros brasileiros? A que se deve dar ênfase na democracia: ao Judiciário ou ao Legislativo?", questionou Joaquim Falcão. "Trata-se do peso político de cada uma dessas instituições. Então, como resolver isso? Quem tem razão?", acrescentou.



independência. Joaquim Falcão lembrou que, pela Constituição brasileira, os poderes são independentes e harmônicos. Na visão dele, porém, essa separação não é tão clara assim. "A Constituição diz que esses poderes são independentes e harmônicos. Não percebo assim. Eles competem entre si", afirmou o conselheiro do CNJ, destacando que isso não necessariamente prejudica a democracia brasileira.

"Muitos perguntam: como fica a democracia? A democracia tem como núcleo principal as regras da competição entre os Poderes, que no fundo reflete-se por opções doutrinárias distintas. De modo que vejo a democracia como uma tensão ou uma competição permanente entre os poderes, que vai ter aliados das duas vertentes. E as estratégias táticas desse jogo se transformam em doutrina e posições interpretativas. A democracia tem regras para que nenhum dos poderes ganhem permanentemente o jogo. É preciso que exista uma sequência de desequilíbrios e equilíbrios. No dia em que essa sequência parar, deixamos de ter democracia", concluiu.

Avanços na judicialização

A redemocratização do País, a maior conscientização da população e o descrédito do Legislativo estão entre as causas do avanço da judicialização e do maior ativismo judicial no Brasil. A avaliação é do constitucionalista Luís Roberto Barroso. Ao participar do Seminário Internacional Direito e Desenvolvimento Entre Brasil e EUA, o especialista saiu em defesa do sistema brasileiro. Ele confessou não ter a menor afinidade com a posição do juiz norte-americano, Antonin Scalia, que defende a aplicação fiel da lei.

"Gostaria de fazer uma defesa aberta do modo como a jurisdição constitucional tem se prestado no Brasil. Ela tem funcionado de maneira eloquente em um estado democrático, para as grandes questões nacionais. Acho também que a jurisdição constitucional no Brasil tem contribuído para o avanço do processo social", afirmou. E acrescentou: "Devo dizer aos senhores que meu modo de pensar a vida e o Direito é radicalmente diferente da do homenageado, Antonin Scalia, quando participei com ele em outro debate."

Barroso esclareceu que, com a Constituição de 1988, o Poder Judiciário deixou de ser um departamento técnico e especializado para ser um poder político a disputar espaço com o Legislativo e Executivo. A promulgação da Carta também permitiu ao cidadão ter mais consciência de seus direitos. "O Judiciário passou a ocupar espaço no imaginário da sociedade, e as pessoas e instituições passaram a ir até ele para postular seus direitos", afirmou o constitucionalista, destacando ser essa a primeira razão que explica o processo de judicialização no País.

"A segunda causa é a constitucionalização abrangente. A Constituição de 1988 trata de uma grande quantidade de matérias. Isso com grande grau de detalhamento. Tem de tudo. Inclui separações dos poderes, tributação, administração pública, previdência e direitos fundamentais, das mulheres, dos índios, dos idosos, entre outros", afirmou Barroso, lembrando que "constitucionalizar é, em ampla medida, tirar do domínio político e trazer para o Direito".

Outra causa da judicialização está ligada ao controle da constitucionalidade das normas, exercido pelo Supremo Tribunal Federal, via ação direta, e até pelas instâncias inferiores da Justiça. "O Brasil adota um sistema de controle incidental de constitucionalidade das leis e atos normativos. Todos os juízes são interpretes da Constituição. Porém, paralelamente a esse sistema, temos o controle que se exerce via ação direta, pela qual quase toda questão política, econômica ou moralmente relevante pode ser levada ao STF. Isso leva a uma importante judicialização da política. Na maior parte dos países, uma questão só chega ao Supremo depois de ter sido debatida na sociedade, ao passo que, no Brasil, podem ser postas diretamente."

Segundo Barroso, a judicialização brasileira é uma consequência. "É um fato e não uma vontade política do Judiciário. É uma circustância do modelo constitucional que temos que facilita que se deduzam no STF questões de naturezas adversas", afirmou.



ATIVISMO. O ativismo judicial, segundo Barroso, ao contrário da judicialização, se caracteriza pela atitude. "Não é um fato, mas um modo pró-ativo e expansivo de interpretar e aplicar a Constituição e a legislação, muitas vezes levando-as a espaços que ainda não foram previstos", explicou. De acordo com ele, esse fenômeno pode se manifestar de diversas maneiras, mas precisamente nos casos em que há um déficit de legitimidade.

O ativismo ocorre quando o Judiciário decide levar os princípios constitucionais a situações ainda não expressas. Exemplo disso foi a decisão acerca da fidelidade partidária, onde definiu-se uma nova hipótese para perda do mandato, no caso mudar de partido após a eleição. Outra característica desse fenômeno é declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo fora das hipóteses previstas. O STF fez isso ao julgar as ações sobre a cláusula de barreira e a verticalização partidária. "O ativismo judicial é, de certa forma, o Judiciário fazendo o papel do Executivo ou Legislativo. Não é por acaso que, no Brasil, o Judiciário se expandiu, no momento em que o Legislativo passou a viver uma crise dramática de representatividade e funcionalidade. O Brasil precisa de uma mudança legislativa urgente", disse Barroso.

Fonte: Jornal do Commercio - Direito & Justiça - 18.05.09 - B-6

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