domingo, 23 de novembro de 2008

Higidez do procedimento eleitoral

Jornal do Commercio - Direito & Justiça - 17.11.08 - B-9

Procedimento eleitoral: higidez do procedimento de coleta e apuração de votos e a legitimidade do resultado
Mauricio Caldas Lopes
Desembargador do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, Professor-Assistente da UCAM, campus Praça 15, e mestrando em Ciências Jurídico-Políticas pela Faculdade de Direito da Universidade Clássica de Lisboa

John Rawls, notável filósofo norte-americano há pouco falecido (2002), pensava uma sociedade justa e bem ordenada, a partir de um consenso a respeito de um conjunto mínimo de regras ordenatórias da vida em grupo, que, embora o pluralismo social, fosse sempre possível obter-se na medida em que as pessoas, a partir de suas respectivas posições originais, isto é, ignorando os papéis que viriam a desempenhar na sociedade - "Véu da ignorância", em suas palavras - não divergiriam quanto a tais condições mínimas.(1) Para isso, entretanto, Rawls pretendia que a eqüidade - fairness - do procedimento de que resultasse esse consenso dependeria da garantia de que cada um de seus membros dispusesse de um mínimo de condições materiais - primary goods - que lhes permitisse participar, racional e imparcialmente, desse consenso. Em outras palavras, sustentava que os direitos e liberdades são, necessariamente, antecedidos pela satisfação das necessidades básicas da pessoa, pelo menos na medida e extensão em que isso se faça necessário aos respectivos entendimento e exercício, de modo que, sem esse mínimo, não se poderia sequer falar em liberdade, menos ainda em exercício de direitos. (2)Essa preocupação com a lisura do procedimento de obtenção desse consenso remontava, entretanto, há séculos. Nas palavras do reverendo Thomas Hooker, proferidas no sermão de abertura da Corte Geral de Hartford, realizada na primavera de 1638, "the foundation of authority is laid in the free consent of the people" e era necessário disciplinar como obtê-lo. Em janeiro seguinte, de 1639, (14 de janeiro) - o documento está datado de 1638 porque os ingleses só vieram a adotar o calendário gregoriano no ano de 1751, iniciando-se o ano, até então, no dia 25 de março -, realizou-se naquela Corte uma Assembléia Geral reunindo os homens livres das cidades de Windsor, Hartford e Weathersfield, que votaram uma carta denominada Fundamental Orders of Connecticut, que estabelecia, desde então, regras procedimentais para as eleições de governadores, magistrados, deputados e seus suplentes, e que é considerada a primeira das Cartas Políticas escritas.Essa mesma e antiga preocupação quanto à formação legítima da maioria sobre a qual se estrutura a própria democracia, vai orientar, na América do Norte, a opção dos denominados procedimentalistas por uma Constituição meramente procedimental, limitada a traçar as regras do procedimento eleitoral - ou, se quiser, de obtenção daquele consenso mínimo - confinando toda a tarefa adjudicada à jurisdição constitucional à sindicância da lisura desse procedimento, a partir de uma idéia bastante singela: se todos, mesmo as minorias, puderam participar do processo eleitoral livremente, devem curvar-se à vontade da maioria expressa nas urnas, porque essa é a que deve prevalecer. A singeleza dessa concepção, porém, entra em rota de colisão com a própria idéia de direitos fundamentais, notadamente com o da igualdade, considerada a pluralidade de que se compõe a sociedade que acaba por excluir do princípio da igual consideração e respeito equal concern and respect - grupos minoritários de pessoas que compõem, por igual, a comunidade, mas que, entretanto, não desfrutam - pelo menos não no mesmo grau e extensão - de igual direito de respeito a suas idéias e opiniões, mas que não podem deixar de ser consideradas numa sociedade composta por segmentos com opiniões diversas, nem por isso menos respeitáveis, na medida em que, embora por caminhos diversos, querem e devem poder, do mesmo modo que as maiorias, realizar o projeto de vida que a autonomia privada lhes assegura.É verdade que John Ely (3) terá pensado uma solução para o defeito, elastecendo a atuação judicial para além da posição singela de árbitros do processo político democrático, de modo a confiar-lhes, também, a tarefa de proteger o direito das minorais isoladas de não serem discriminadas ainda quando tenham podido participar do processo político, se acabam por se ver prejudicadas pelas decisões tomadas pelas maiorias eventuais - e, considere-se, são sempre eventuais, à vista da periodicidade e alternância que vincam o processo democrático.Limita, entretanto, a sindicância judicial a propósito do direito a não discriminação, ao processo político em si mesmo: se no decorrer desse processo foram, com igual consideração, sopesados os direitos de todos, não há do que reclamar nem a respeito se prover, na medida em que "... La igualdad no exige que los intereses de todas las personas sean satisfechos...".(4)Nessa perspectiva, não é todo prejuízo causado às minorias que se sujeita à revisão judicial, mas somente aquele relacionado ao que denomina falta de interação social ou de comunicação entre maioria e minorias isoladas, na medida em que a falta de conhecimento das reivindicações desses grupos minoritários facilita, no mínimo, a ocorrência daquele prejuízo. Para Ely, tendo havido interação social suficiente entre os grupos minoritários isolados e o majoritário, a lei é válida, não se permitindo ao juiz invalidá-la, ainda que em desacordo com os juízos de valor que lhe deram suporte.O Brasil, contudo, não adotou uma Constituição meramente procedimental, mas substantiva, provida de extenso catálogo - não exauriente, entretanto - dos direitos fundamentais - confiando ao Poder Judiciário a tarefa da guarda da Constituição, a da proteção, promoção e desenvolvimento daqueles direitos, e também daquela outra, de zelar pela lisura e legitimidade do procedimento eleitoral, que porta índole instrumental do direito ao sufrágio periódico, universal e secreto, de que se vai extrair o consenso mínimo necessário à ordenação daquela sociedade justa a que se referia o eminente professor de Harvard.Pois bem, concluídas as eleições municipais deste ano, e com justas razões, o presidente do Tribunal Superior Eleitoral, o eminente ministro Ayres Brito, por cuja pessoa nutro respeitosa simpatia, enfatizou que não ficamos mesmo a dever nada a outras nações quanto à lisura do processo de coleta dos votos e da respectiva apuração, mas, lamentavelmente, isso não assegura, só por si, a legitimidade do respectivo resultado, que continua a depender, como acentuado por Rawls - e por aqueles que se debruçam sobre o princípio da maioria -, de que todos os que participam do processo de tomada de decisões tenham acesso a um mínimo existencial, ou social, que Robert Alexy resume no direito de toda a gente ao livre desenvolvimento de sua personalidade - e de algumas especiais potencialidades, até (Art. 208, V, CRB) - no seio da comunidade em que vive, e que deve ser entendido sob o foco da teoria dos princípios, pressupondo certo grau de liberdade factual ou material. Assim, se o escopo dos direitos constitucionais é o de assegurar o livre desenvolvimento da personalidade humana, então ele também se direciona à liberdade de fato, isto é, a de assegurar os pré-requisitos de realização das liberdades legais, que não podem ser, então, considerados apenas princípios de permissão legal para agir, mas de capacidade factual de agir ou atuar nesse sentido - de desenvolvimento da própria personalidade e dignidade, como acentua o ilustre professor alemão. (5)Essa é a questão real que perpassa todo o processo político-eleitoral brasileiro quando se considere a mais absoluta ausência do Estado nas denominadas comunidades carentes - das mais populosas, aliás, na cidade do Rio de Janeiro - que logo encontram nas figuras dos traficantes ou, mesmo, dos milicianos, a proteção que o Estado não lhes dá, a ponto tal de lhes orientarem o voto nesse ou naquele candidato que lhes apóie as nefastas pretensões - deles, os abomináveis "líderes" obstruindo, para dizer o mínimo, os canais de comunicação entre os cidadãos que compõem tais comunidades e as maiorias.Na área da saúde e da educação, então, o Estado simplesmente ignora a absoluta prioridade constitucional de que desfrutam os respectivos investimentos (6), para aplicar os recursos públicos em cidades do samba ou da música, enquanto os hospitais públicos apenas mínguam. O ensino - consultem todos, por favor, os artigos 205 a 214 da CRB porque a Constituição é de todos e por todos deve ser interpretada, como propõe Peter Häberle (7) é o de inferior qualidade, e isto quando há vagas nas escolas públicas que impeçam, ou pelo menos dificultem, a adoção de nossas crianças por traficantes. Quem conte hoje mais de 50 anos de idade certamente que se lembrará do nível de excelência de que desfrutavam os hospitais da cidade do Rio de Janeiro, como o dos Servidores do Estado - que, em certa época, até aposentos permanentemente reservados ao Presidente da República mantinha - ou o da Lagoa ou o da Ilha do Fundão, hoje sucateados e desacreditados.Quem não possa custear um plano de saúde privado que lhe dê acesso aos cuidados médicos de que necessite, simplesmente não os tem senão por enérgica intervenção judicial que lhos garanta e que tantas e injustas críticas tem merecido a pretexto de uma reserva do possível que se revela apenas virtual, não fora os desvios das precedências constitucionalmente estabelecidas.As pessoas que participam do procedimento de obtenção do consenso geral a propósito do ordenamento mínimo necessário a uma sociedade justa e bem ordenada, não são livres porque a nada têm acesso, senão que à falsa proteção que lhes oferecem aqueles que ocupam o vácuo que Estado vai deixando na esteira de sua inconstitucional omissão. E aí a questão: embora nada fiquemos mesmo a dever a qualquer outro país quanto ao processo de coleta e apuração dos votos de nossos eleitores, o resultado obtido é legítimo? As leis e atos normativos que os assim eleitos vão editar em nome de todos são, por igual, legítimos, ou representam apenas idéias, anseios e pretensões dos grupos que os "elegeram"? (8) Ora, absolutamente conspurcados desde o nascedouro em decorrência de um consenso extraído de um procedimento despido da mais mínima eqüidade - fairness -, que Rawls tanto reclamava para a respectiva legitimidade, sem dúvida acabam contaminados pelo vício de origem, a subtrair-lhes a legitimação que só o consenso de pessoas livres poderia assegurar. A campanha dos candidatos às eleições municipais deste ano no Rio de Janeiro denunciou mais do que isso, expondo as entranhas de uma ilegitimidade que só vai encontrar paralelo no "coronelismo" tão triste memória, que se sustentava no "voto de cabresto". Os candidatos que não fossem os dos "grupos" da área nem campanha ali podiam fazer. Eram, ostensivamente, "convidados" a se retirarem ou tinham o respectivo ingresso na área negado, por bandidos armados até.É verdade que as Forças Armadas, convocadas pela Justiça Eleitoral, intervieram em ordem a assegurar o acesso de todos os candidatos a essas áreas; os telefones móveis foram proibidos nas cabines de votação, mas isso não foi nem será suficiente à desobstrução dos canais de comunicação dessas minorias com as maiorias que compõem a sociedade, muito menos para fazer valer o direito que têm àquelas condições mínimas liberdade material sem as quais não se pode sequer falar em democracia.Desses episódios aqui apenas referidos, se recolheu muito mais do que o espaço permite narrar, porém o que avulta é a ausência de liberdade material ou factual de agir - a permissão existe - e, lamentavelmente, já não só por ausência da eqüidade (fairness) que o procedimento de obtenção do consenso exige... 1 - RAWLS, John. Uma teoria da justiça.Trad. Carlos Pinto Correia.-Lisboa, EditorialPresença,1993, e, anos mais tarde, O liberalismo político.Trad. João Sedas Nunes.-Lisboa, Editorial:Presença,1997.2 - BARCELLOS, Ana Paula de. "A Eficácia Jurídica dos Princípios Constitucionais", Editora Renovar, 2008, p. 132: "Pelas mesmas razões, a democracia, sem que todos os participantes da deliberação tenham condições básicas de dignidade material, descreve apenas uma ficção."3 - ELY, John Hart. Democracy and Distrust. A theory of judicial review. Cambridge, Mass. Harvard University Press, 1980.4 - FERRERES COMELLA, Victor. Justicia constitucional y democracia. Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, 2ª ed., Madrid, 2007, p. 58.5 - "This is to be understood in the light of the theory of principles which require that the individual be able freely to develop his dignity in social comunity, which presupposes a certain degree or factual freedom. The conclusion is irresistible that if the aim of constitutional rights is the freely developing human personality, then they are also directed towards factual freedom, that is, they secure the prerequisites for the realization of legal liberties, and thus are not only principles of legal permission, but also factual capacity to act".(ALEXY, Robert. A Theory of Constitucional Rights, Oxford University Press, translation by Julian Rivers, 2002, pp. 339/340).6 - Consulte-se, a propósito, o ensaio de Ana Paula de Barcellos Neoconstitucionalismo, Direitos Fundamentais e Controle das Políticas Públicas, publicado na Revista Diálogo Jurídico, nº 15, janeiro/fevereiro/março de 2007, Salvador, Bahia. 7 - Esse eminente constitucionalista alemão, que, a partir da reconciliação das dimensões objetiva e subjetiva dos direitos fundamentais, engendrou-lhes a respectiva teoria institucional, propõe uma sociedade aberta de intérpretes da Constituição (HÄBERLE, Peter. A sociedade aberta dos intérpretes da constituição: contribuição para a interpretação pluralista e "procedimental" da constituição. Trad. Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sergio A. Fabris, 1997) que, aliás, deve, em suas palavras, ser, alto e bom som, recitada nos logradouros públicos, até porque e afinal, os protagonistas do fato social sobre que vão buscar densidade as cláusulas abertas da Constituição são mesmo as pessoas que a pré-interpretam, nas relações intersubjetivas que travam no dia-a-dia.8 - Confira-se a propósito, em As Licitações e Contratações Públicas no Cenário da Governança Eletrônica, de Jessé Torres Pereira Júnior e Marinês Restelatto Dott: "Considere-se, a título de ilustração, que a adoção das chamadas urnas eletrônicas, a partir das eleições de 1996, decerto que aumentou os índices de segurança e praticidade do processo eleitoral brasileiro, reduziu-lhe custos e viabilizou a apuração, em horas, de milhões de votos que, antes, demandavam semanas, permeadas de suspeitas de fraudes. Nenhum desses avanços assegura, porém, a fidelidade dos eleitos ao mandato e às expectativas de seus eleitores. Em outras palavras: a ferramenta tecnológica não responde pelo uso que dela fará aquele que a maneja ou que dela se beneficie; o uso dependerá antes de compromissos com valores éticos do que de destreza, ou seja, axiologia acima de tecnologia." (Revista da Emerj; vol. 11; nº 42; 2008; pág. 19).

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