segunda-feira, 17 de novembro de 2008

Constituição e administração pública gerencial

Valor Econômico - Legislação & Tributos - 17.11.08 - E2
A Constituição e a administração pública
Farlei Martins Riccio de Oliveira

Na sessão de encerramento da Assembléia Nacional Constituinte, Ulysses Guimarães enfatizou que a promulgação da Constituição Federal significava dar passos rumos às mudanças democráticas: "A nação quer mudar. A nação deve mudar. A nação vai mudar." Hoje, passados 20 anos, será que a nação mudou? Após tantas emendas a Constituição manteve sua essência? Qual o seu legado para a nação?

Essas questões têm sido debatidas em vários congressos, editoriais, entrevistas e artigos de opinião. Parece que há um consenso de que o saldo é positivo, não apenas por ter sido o resultado de um grande pacto nacional, ter encerrado o ciclo de poder militar, ter privilegiado as políticas públicas sociais, ter expressado uma força simbólica do recomeço, mas, sobretudo, por ter efetivado o que Peter Häberler denomina de "constituição como cultura", ou seja, a constituição entendida não apenas como um texto jurídico, "mas também a expressão de um nível de desenvolvimento cultural, instrumento de representação cultural autônoma de um povo, reflexo de sua herança cultural e fundamento de novas esperanças".
Mas será que já estamos em condições de realizar um balanço institucional da Constituição? Acredito que a resposta seja negativa. Em primeiro lugar, a Constituição completou 20 anos. O que parece muito como idade biológica é pouco para uma nação. Basta lembrarmos que a Constituição Imperial de 1824 vigorou por 65 anos e foi um documento de importância capital para a nação, pois exprimiu um instante de afirmação soberana em relação a Portugal. O Brasil pós-Constituição de 1988 revela-se, portanto, uma jovem democracia de maturidade ainda indefinida.
Em segundo lugar, não podemos deixar de considerar as críticas que foram formuladas quando da promulgação e que ainda repercutem no meio acadêmico e político: de que a Constituição seria demasiadamente detalhista, irrealista e nasceu na contramão da história. Com efeito, o texto passou ao largo das experiências de concisão e objetividade da Constituição americana, que tem 7 artigos e 27 emendas, e até mesmo da Constituição brasileira de 1824, com 179 artigos. Por outro lado, ao prescrever direitos sociais que até hoje não se tornaram realidade e impor um gasto social que pesou no orçamento público, gerando déficit, sem o retorno da expansão do PIB, a Constituição comprometeu a sua efetividade. Por fim, a Constituição foi promulgada em uma época em que o mundo passava por transformações tão rápidas que os constituintes não souberam aproveitar, criando um "gap" que precisou ser corrigido por emendas posteriores.
Contudo, a crítica mais relevante observada no legado do constituinte de 1988 é uma crise institucional entre os poderes do Estado. O Supremo Tribunal Federal (STF), por exemplo, desempenha desde 2007 um papel que lhe aproxima do modelo neoconstitucionalista. Mas, como fruto do ativismo judicial que este modelo supõe, percebe-se um nítido descolamento com o princípio da separação de poderes. Ademais, a Constituição reforçou o papel do Poder Executivo, criando um sistema político com corpo parlamentarista e cabeça presidencialista. A previsão da medida provisória e o fato de que 90% da base governista vota com o governo permite ao presidente da República uma maior ingerência no Poder Legislativo, especialmente sobre o orçamento, criando dificuldades para a oposição. Se não bastasse o desequilíbrio entre os poderes do Estado, o constituinte, pretendendo corrigir males e abusos do passado, acabou por criar áreas de suspeição para com as Forças Armadas e o sistema de informação, desarmando o Estado contra o terrorismo e a corrupção.
No que se refere à administração pública, inegavelmente a Constituição inovou. Ao positivar no texto uma série de normas e princípios, vinculando a atividade administrativa a um amplo controle judicial de legalidade e legitimidade, pretendeu afastar as práticas administrativas de conceitos e princípios do patrimonialismo, paternalismo e assistencialismo. Todavia, a crítica de que nasceu na contramão da historia parece-me válida em relação ao projeto constituinte da administração pública, pois não atentou para as transformações sociais, políticas e econômicas que aconteciam na época.
Na década de 70, a crise econômica e social do Estado afetou diretamente a organização das burocracias públicas. Era iminente a refundação da administração pública sob novas bases, emergindo como resposta a administração pública gerencial. A modernização da administração pública com esse enfoque surgiu primeiramente no Reino Unido, em 1979, nos Estados Unidos, em 1980, e na França, em 1989.
No Brasil, ainda que na década de 30 e 60 tivéssemos esboçado uma reforma, somente na década de 90, com o lançamento do Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado, iniciou-se uma reforma administrativa, procurando efetivar aquilo que o constituinte deixou de fazer. Posteriormente, o Congresso Nacional tratou da matéria por meio de emendas e legislações infraconstitucionais.
Se essa reforma produziu resultados, se foi capaz de efetivar a transição da administração burocrática para a gerencial, creio que ainda não podemos avaliar em face do pouco tempo de implementação. O que podemos constatar é que em outros países o processo de aperfeiçoamento e reforma da administração pública é contínuo. Na França, o conselho de modernização das políticas públicas orientou recentemente o governo para a adoção de 166 medidas destinadas à racionalização dos serviços do Estado. O arsenal de dispositivos vai da política de habitação à reorganização territorial. Na China, o Partido Comunista apresentou um projeto de reforma administrativa no qual pretende reduzir os níveis gerenciais, tornando a máquina administrativa mais ágil e menos burocrática.
Não resta dúvida de que o constante aperfeiçoamento da administração pública converge para o desenvolvimento econômico sustentável e para a cidadania, não podendo o país deixar de considerá-lo, independentemente da política partidária que adote.
Farlei Martins Riccio de Oliveira é advogado da União, professor de direito administrativo da Universidade Cândido Mendes e doutorando em direito do estado pela Pontifícia Universidade Católica (PUC) do Rio de Janeiro

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